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Às crianças, com carinho!

Artigo XVIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948):

Toda pessoa tem direito a uma ordem social e internacional, em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente realizados”.

 

A história é o principal fator comparativo nas mudanças sociais globais. Há as mudanças intangíveis como costumes, cultura e relações políticas, difíceis de encaixarem em um movimento linear do tempo e, por isso mesmo, necessitam da interpretação de uma análise topológica, como as escadas de Escher que nunca terminam. Talvez, por isso mesmo, pode-se reportar a expressões tão antigas como: “Não há nada de novo sob o sol” (Eclesiastes 1:9). Em outras palavras, esse tipo de mudança perdura com seus construtos originais, e também pode se apresentar com novas roupagens no presente, resultado de um somatório de vínculos abstratos do passado.

Já as mudanças tangíveis, compostas de tecnologia agregada em seus componentes, são perceptíveis e incisivas. Existem aquelas que evoluíram consideravelmente em pouco tempo, como as aeronaves e os computadores (disruptivas), e outras que vão se transformando em um ritmo menos intenso, como o automóvel e o vestuário (aprimoradas). Também se categorizam as quase estacionárias, como o rádio e o telefone comum (residuais), ou até as que desapareceram na linha histórica como a fita cassete e o mimeógrafo (obsoletas). Para essas quatro categorias, a linha comum é a linearidade no intervalo de tempo considerado nessa viagem em diferentes anos, décadas ou séculos.

Juntas e misturadas, as mudanças sempre despertam a expectativa de encontrar a solução derradeira para problemas antigos provenientes da irracionalidade no emprego de recursos, ou na burocracia de ladravazes, ou nas doenças que ceifam vidas, ou ainda a fome, a miséria e o maior flagelo, a guerra com a sua nova face do terrorismo mundial.

Além do tempo, a distância relativa de foco nas mudanças permite uma visão com novas perspectivas e, consequentemente, interpretações. Não se pode limitar a compreensão ao imediatamente percebido, sobretudo na paralaxe do calor das emoções. A sabedoria e a precaução ensinam que a imparcialidade é fruto de uma visão (ou compreensão) do todo. Como o objetivo de qualquer batalha é vital, então fazer uma leitura da mudança exigida com clareza e destemor, afloram as fragilidades mais enraizadas e que persistem na tentativa de superá-las. Algumas tão antigas quanto à gênese da própria espécie, parecem impregnadas no convívio humano.

A vilania, a covardia e a alienação, tríade do mal que atravessa séculos, insistem em compor uma atmosfera pesada e putrefata que provoca, muitas das vezes, sentimentos nunca imagináveis, nem nos livros de ficção ou nos filmes de terror. Por outro lado, a compaixão e a legalidade, na convivência da massa amorfa não organizada, sempre são irrelevantes face às arbitrariedades do grupo articulado no estamento burocrático. É dessa forma que um movimento revolucionário sempre descamba para o caos, a perseguição e o autoritarismo, como atesta Carvalho (1996). E há ainda no caleidoscópio social que vai se fragmentando, aqueles que enxergam apenas as cores da bizarria, outros do ceticismo, e ainda a ausência de cor que leva ao fanatismo, típicos do medo de uma sujeição que caiba todos os interesses em um grande acordo. Basta ver a Declaração de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), que completa agora 70 anos, tão ofendida e humilhada na ruptura de seus princípios e valores pelos próprios membros que a assinaram. Dessa forma, de um lado vem o reforço a dogmas radicais religiosos, e de outro, o surgimento dos arautos de um estado autoritário, ambos com a suposta verdade impregnada da arrogância agressiva de dominadores, na tentativa de lavarem as insurgências e os pecados com a destruição. Conforme Pipes (1999, pag.104), “As sedições são causadas em 1º lugar por inovação na religião, e em seguida, por impostos”, citando Francis Bacon. Não importa, essa é a zona de sombra que habitam também os doentes mentais e revoltados. É onde o pau quebra.

 

Quem desejar ir mais longe no tempo, o melhor passaporte é o livro “História das Guerras” de Magnoli (2006), onde diversos autores resgatam fatos de 25 séculos atrás até os dias de hoje, do oriente ao ocidente, lembrando o filósofo grego Heráclito (535-475 a.C): “A guerra é o pai de todas as coisas”. Há também o livro de Marriot (2012) que mesmo bem condensado, evidencia, página após página, os conflitos na história da raça humana. Mas, nesse artigo o objetivo é outro: estabelecer uma relação de causa-efeito comum aos conflitos e beligerância humana e, sobretudo, apresentar uma alternativa de responsabilização nessa era. Embora os pesquisadores acima afirmem que:

 

A história das guerras é uma história de alteridades. Cada guerra é um fenômeno único, singular, irredutível… Mas as guerras dialogam umas com as outras. …A história das guerras é, sobretudo, a história do gênio humano aplicado à destruição. (Magnoli 2006, Pag. 15 e 16)

 

não há o que contestar que a guerra é efeito, consequência, e que existem múltiplas causas que se inter-relacionam, a principal delas é a síntese da tríade citada acima. Longe de ser simplista e clichê, essa conclusão é direta no entendimento e transparência na retórica dos envolvidos.

Toda manifestação violenta gera no mínimo a dor para os inocentes e uma reação de impotência aos que a assistem. Proveniente das ações da natureza e seus fenômenos como terremotos, vulcões ou enchentes, a solidariedade das pessoas se manifesta para o apoio e recomeço da vida. Mas, se advêm de seus semelhantes, há um misto imediato de desespero, revolta e vingança, e aos expectadores uma indignação de vergonha profunda. Quanto mais o ciclo se repete, mais banal ficam as ações e as reações, como se normalizassem no cotidiano. Vão surgindo estatísticas meias difusas, inicialmente residuais, mas se avolumando até que por fim nublam as vistas ou colorem de sangue e conformismo as cenas diárias.

Das fossas repletas de jovens idealistas, moribundos e esquartejados física e moralmente da 1ª grande guerra, ao terror da eugenia e do holocausto nuclear do 2º conflito mundial, somam-se a elas (12M e 60M, respectivamente), outras tantas guerras e conflitos armados no planeta, medidas em milhões(M) e milhares(m) de vítimas, de maior destaque na imprensa mundial:

China (expurgo de MAO) – 40M

URSS (expurgo de STALIN) – 3M

Camboja (expurgo Khmer Vermelho)- 2,5M

Coréia-1,2M;

Vietnã-2,1M;

Oriente Médio-1,4M;

África-1,0M;

Síria-220m;

Brasil, (última década, crime organizado)-400m.

Cuba (era Castro) – 6m

USA, (11 de setembro) -3m;

 

A lista oficial só vai aumentado ao computar o somatório das categorias não informadas ou estatisticamente não significativas.

No ajuste de toda mira de arma de fogo, há uma indústria bélica poderosa que é o instrumental que viabiliza as atrocidades legais e ilegais em escala imprevista, de décadas para cá, da maldade humana. São empresas que atuam como sociedades anônimas, com ações nas principais bolsas de valores espalhadas pelo mundo e, por incrível que pareça, investidores que se regozijam pelo sucesso de suas vendas e, óbvio, pelos dividendos de suas ações e lucros.  A tabela 1 a seguir traz os nomes das 10 maiores indústrias bélicas no mundo, que venderam no total mais de US$ 250 bilhões em armamentos em 2011, de acordo com dados do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute)

 

 Tabela 1 – Vendas de Armamentos  e Lucro de Empresas

                        Empresa                                    Vendas (US$)     Lucro (US$)

  1  Lockheed Martin 36 270 2 655
  2  Boeing 31 830 4 018
  3  BAE Systems (UK) 29 150  2 349
  4  General Dynamics 23 760 2 526
  5  Raytheon 22 470 1 896
  6  Northrop Grumman 21 390 2 118
  7  EADS (trans-Europe) 16 390 1 422
  8  Finmeccanica (Italy) 14 560 –3 206
  9  L-3 Communications 12 520 956
10  United Technologies 11 640 5 347

Fonte: SIPRI Yearbook 2011  (www.sipri.org)

 

Ainda de acordo com o SIPRI,  Yearbook 2018, as vendas de armas e serviços militares pelas maiores empresas de serviços militares e de armas do mundo totalizaram US $ 398,2 bilhões em 2017.

O Brasil não fica longe, com vendas totais em torno de US$ 2,5 bilhões ao ano, onde se destacam empresas como a EMBRAER, CBC, CONDOR, TAURUS e AVIBRAS, de acordo com o SMALL ARMS SURVEY. Pesquisadores constataram que a maioria (78%) das armas utilizadas em homicídios e crimes, é produzida no Brasil (ROSSI e TAURUS) e que desse total, 19% delas são registradas ou legais e 81% ilegais (A Fatal Relationship: Guns and Deaths in Latin America and the Caribbean, www.smallarmssurvey.com). A insegurança pública leva a posições extremas: o cidadão de bem deve se proteger, e para tal, se armar. No caso do Brasil, longe disso ser uma falácia, é mais a constatação de uma sociedade eivada pela criminalidade e sem a blindagem dos poderes públicos! Os excessos é que devem ser evitados sob a pena da lei, pois os extremos só acirram os debates.  É o caso, por analogia, dizer que a descriminalização da maconha é “de boa”, pois as propriedades bioquímicas do canabidiol ajudam a curar os males das pessoas.

A exemplo da indústria de tabaco que carrega os males do cigarro nas denúncias em seus maços, já passou a hora de denunciar também e “tirar de moda” a indústria bélica e toda a sua cadeia produtiva, e isso seria um marco considerável na preservação ou evolução da espécie.  O impedimento ou restrições na negociação de ações dessas empresas, como o controle nas mudanças da legislação SOX (Sarbanes-Oxley) das sociedades anônimas de alcance mundial. Essa lei foi sancionada em 2002 pelo Congresso dos Estados Unidos para proteger investidores e demais stakeholders dos erros das escriturações contábeis e práticas fraudulentas. A lei surgiu como resposta a uma série de escândalos financeiros que atingiram empresas como Xerox, Enron, Tyco, WorldCom, etc, e posteriormente, copiada em várias sociedades no mundo.

Outra opção de compensação, é o país que vende mais armas, receba o maior número de refugiados de comunidades destroçadas por elas. Não existe apelo maior do que aquele que as pessoas sentem no bolso ou convivam com o efeito de suas ações.

De acordo com a tabela 2, os cinco maiores fornecedores de armas em 2013–17 foram os Estados Unidos, a Rússia, a França, a Alemanha e a China, e representaram 74% do volume total global de exportações de armas importantes. Desde 1950, os EUA e a Rússia (ou a União Soviética, antes de 1992) têm consistentemente sido de longe os maiores fornecedores e, juntamente com os fornecedores da Europa Ocidental, têm historicamente dominado a lista dos 10 principais fornecedores.

Os cinco maiores importadores de armas foram a Índia, a Arábia Saudita, o Egito, os Emirados Árabes Unidos e a China, que juntos responderam por 35% das importações totais de armas. A Ásia e a Oceania foram a principal região receptora, respondendo por 42% do volume global total de importações de armas importantes em 2013–17, seguidas pelo Oriente Médio, que respondeu por 32%. O fluxo de armas para o Oriente Médio cresceu 103% entre 2008-12 e 2013-17. O fluxo de armas para a Ásia e Oceania também subiu 1,8 por cento. Em contraste, o fluxo de armas para a Europa diminuiu notavelmente em 22%, assim como o das Américas, em 29%, e a África, em 22%.

 

Tabela 2- Principais Importadores e Exportadores de Armas

Fonte: SIPRI Yearbook 2018

Não importa onde, mas quem vende e compra armas, vende e compra a morte. A história é sempre a mesma: há uma mobilização/transação de bilhões de dólares para um resultado social que é um fracasso, um fiasco. São poucos os que realmente ganham. Essa conversa de defender fronteiras, reservas minerais, soberania, é cínica, ultrapassada e desnecessária tanto quanto a ONU interfere nas questões dos refugiados das guerras, ou nas sanções aos USA relativas ao “fogo amigo” em hospitais e áreas civis nas zonas de conflito. A vaidade humana comporta a imagem de uma flor de lótus da alienação, limpa e pura, no pântano imundo da hipocrisia mundial.

O oportunismo no lucro exagerado dos mercadores da morte nas transações europeias e norte americanas sobretudo, como um abraço de afogado, arrastam os demais povos nessa ciranda macabra, alastrando com o fogo e o aço rasgando a pele de inocentes, e transformando cidades em infernos. Mas, os investidores querem é mais, incapazes de perceber que a ameaça, sobretudo do terrorismo, já está em seus jardins.

 

Os exemplos icônicos nessa disputa macabra mundial pelo poder são as crianças, com as suas vidas ceifadas, juntas a outros inocentes. Como pontos coloridos no horizonte das trilhas e praias do Mediterrâneo, onde levas de emigrantes fogem dos conflitos e da miséria no caos que bombardeios arrasaram a cidade síria de Kobani, ou ainda na tentativa de entrada nos USA pelo Novo México de caravanas de refugiados da América Central. Nessas cores, se destacam indeléveis: o vermelho sangue do casaco de um garoto 3 anos de idade, Aylan, que deitado à margem de uma praia turca, parecia esperar o seu irmão Galip de 5 anos, também afogado na travessia, venha acorda-lo de um sonho não mais possível, ou o azul da blusa da pequena guatemalteca Jakelin de 7 anos, morta por desidratação e exaustão ao cruzar o muro da insensatez.

 

                                               Prof. Dr. Márcio Bambirra Santos

mb@mbambirra.com.br

Referências:

CARVALHO, Olavo. O Imbecil Coletivo – V1 – atualidades inculturais brasileiras. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade. 1996.

MAGNOLI, Demétrio (org.). História das Guerras, São Paulo, Ed. Contexto, 2006.

MARRIOTT, Emma. A história do mundo para quem tem pressa, Rio de Janeiro, Ed. Valentina, 2018.

PIPES, Richard. Propriedade e Liberdade, Rio de Janeiro, Ed. Record, 1999.

Sites:

www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.html

www.sipri.org

www.smallarmssurvey.org

www.treasy.com.br/blog/sox-lei-sarbanes-oxley/

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